Passava da meia noite quando Diva e a avó
resolveram se deitar. Ela estava cansada da viagem e percebeu que a avó estava
cansada também, mas ainda tinham tanto o que conversar! Mas era melhor deixar
para o outro dia.
Diva se jogou na cama, sentindo-se tão
leve. Como era bom abrir o coração! Parecia que naquele momento todos os seus
problemas tinham ido embora. Mas sabia que não era bem assim, quando
encontrasse o noivo, dali a poucos dias, e enfrentaria também a fúria de sua
mãe, que com certeza não se cansaria de dizer que ela tinha feito a pior burrada
de sua vida, como sempre fez e blá blá blá...
Mas só queria pensar nisso depois. Só depois...
Pela janela do quarto uma brisa refrescava
o quarto. Deitada na cama olhava o céu meio nublado, poucas estrelas. Decidiu
que iria dormir com a janela aberta mesmo e levantou-se, enquanto esperava o
sono chegar, para olhar a cidade, a Torre e o casarão. Apenas uma janela velha
estava aberta. Como seria a vida daquela pessoa que morava ali? Como ele devia
ser? Velho rabugento? Por que deixou a casa ficar daquele jeito como se estivesse
abandonada? Era curioso...
Mais ao longe, Diva olhou a Torre Eiffel
toda iluminada. Tão linda! E prometeu que no outro dia cedo iria visitá-la, mas
no fim da tarde, quando as luzes coloridas deixavam-na tão romântica! Mas por
agora, queria dormir. O sono chegou. Saiu da janela, vestiu sua velha camiseta
que gostava para dormir, apagou as luzes e se jogou na cama. Ah, como era bom! Cama
tão macia. Corpo e alma tão leves.
Mas no meio do silêncio bom uma música
alta vinda do lado de fora invadiu o quarto. E ninguém se incomodava com aquela
musica tão alta em plena madrugada? Passava da uma da manhã. Se fosse na capital,
com certeza, já teriam chamado a polícia, Diva pensou, prestando atenção na
música que não conhecia. Mas ali, na Pequenaparis todos continuavam dormindo,
pareciam acostumados. Nem um vizinho xingou. Nem uma luz se acendeu. A música
vinha do casarão. A mesma música que acabava e começava, acabava e começava,
sem fim... E apesar do barulho todo, voltou a pegar sono.
Só acordou quando um cheiro gostoso de
feijão temperado perfumou o seu quarto. Era quase meio-dia. Quase meio-dia?
Sim, quase meio-dia. Não acreditou que tivesse dormido tanto! Há quanto tempo
não fazia isso? Trocou de roupa, escovou
os dentes, penteou os cabelos e desceu para a cozinha, onde a avó e uma amiga
conversavam.
- Bom dia! – ela disse às duas senhoras.
- Bom dia! – a avó e a amiga responderam
juntas e a avó acrescentou: - Diva, essa é a minha amiga, Doralice.
- Como vai menina bonita? – A senhora
simpática, de cabelos cinza e rosto de anjo lhe estendeu a mão.
Diva sorriu e completou:
- Doralice e dona Alice. Isso é que é
amizade. Até os nomes são parecidos.
- Você viu? - Doralice sorriu. - E você é
muito bonita! Parece até artista de cinema.
- É bondade da senhora! – Diva corou.
- Não é não. Eu não sou bondosa. Estou
falando a verdade. Você é solteira?
- Quase... – Diva respondeu olhando para a avó, que lhe deu uma piscadinha.
- Quase... – Diva respondeu olhando para a avó, que lhe deu uma piscadinha.
- Quase solteira? Como é isso? –
perguntou a mulher curiosa.
- É uma longa história, Dora. – a avó respondeu. – Coisas desses jovens! – piscou novamente para a neta. – Você me ajuda a terminar o almoço, Dora.
- Claro. Ajudo sim. Eu fiz uma torta deliciosa de chocolate, vou buscar lá em
- É uma longa história, Dora. – a avó respondeu. – Coisas desses jovens! – piscou novamente para a neta. – Você me ajuda a terminar o almoço, Dora.
- Claro. Ajudo sim. Eu fiz uma torta deliciosa de chocolate, vou buscar lá em
casa. Volto já.
- Gostei
dela. – Diva falou, bocejandoo.
- Ela
é um doce de pessoa. É minha melhor amiga. – a avó apanhou uma jarra
de suco de laranja na geladeira para oferecer a neta.
- Não
vó, obrigada! Eu vou esperar o almoço.
- Você
dormiu bem?
- Eu
demorei para pegar no sono com aquela música alta... – puxou uma
cadeira, sentou-se.
- Ah, eu me esqueci de te avisar. De vez em quando o Julian faz isso.
- Julian é o homem do casarão, não é?
- É, ele mesmo. De vez em quando liga o rádio alto para ouvir Marvin Gaye.
- Marvin Gaye?
- Sim, o cantor que ele ouviu ontem. E sempre. – a avó sorriu. Ele só escuta Marvin Gaye. Na verdade, só aquela música...
- Ah, eu me esqueci de te avisar. De vez em quando o Julian faz isso.
- Julian é o homem do casarão, não é?
- É, ele mesmo. De vez em quando liga o rádio alto para ouvir Marvin Gaye.
- Marvin Gaye?
- Sim, o cantor que ele ouviu ontem. E sempre. – a avó sorriu. Ele só escuta Marvin Gaye. Na verdade, só aquela música...
- Mas,
por quê?
- Não
sei, Diva.
- Vó,
me fala dele. Eu fiquei curiosa.
D. Alice mexeu a comida na panela, tampou-a em seguida,
depois puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da neta.
- Eu não sei muito a respeito dele, Diva. Na verdade, eu sei somente o que a cidade comenta, porque eles não eram muito sociáveis. Mas, foi o bisavô dele quem fundou essa cidade quando ele veio de Paris para cá. Era um empresário de sucesso. Depois o que eu sei é que nessa casa, moravam o Julian, o pai e a mãe. A mãe dele se matou quando ele ainda era criança, o pai enlouqueceu e mais tarde morreu, mas como quase nunca saíam de casa, só ficamos sabendo da morte meses depois. Ele se casou com uma moça muito bonita. Ela eu conheci e tiveram uma filha que morreu a uns anos atrás de câncer. A esposa desapareceu. Acho que eles se separaram. Ele ficou sozinho no casarão. A história toda não conhecemos. Ele não tem amigos, de vez em quando sai para dar umas voltas pela cidade... Mas sempre sozinho...
- Eu não sei muito a respeito dele, Diva. Na verdade, eu sei somente o que a cidade comenta, porque eles não eram muito sociáveis. Mas, foi o bisavô dele quem fundou essa cidade quando ele veio de Paris para cá. Era um empresário de sucesso. Depois o que eu sei é que nessa casa, moravam o Julian, o pai e a mãe. A mãe dele se matou quando ele ainda era criança, o pai enlouqueceu e mais tarde morreu, mas como quase nunca saíam de casa, só ficamos sabendo da morte meses depois. Ele se casou com uma moça muito bonita. Ela eu conheci e tiveram uma filha que morreu a uns anos atrás de câncer. A esposa desapareceu. Acho que eles se separaram. Ele ficou sozinho no casarão. A história toda não conhecemos. Ele não tem amigos, de vez em quando sai para dar umas voltas pela cidade... Mas sempre sozinho...
- Nossa,
que história!
- É triste, né? Mas cada um de nós tem nosso punhado de provações aqui nesta vida, não é mesmo? Todo mundo tem a sua cruz para carregar.
- É triste, né? Mas cada um de nós tem nosso punhado de provações aqui nesta vida, não é mesmo? Todo mundo tem a sua cruz para carregar.
- É
verdade. – Diva se levantou quando ouviu o portão se abrir e olhou pela janela para ver quem era. Era a Doralice que entrava com sua
torta de chocolate acompanhada de um
senhor de bigodes com uma pasta mão.
- Alice,
esse é o Sr. Fontes. – Doralice apresentou o homem que estendeu a mão para a avó que o convidou para entrar.
Diva olhou-o, curiosa. Sentaram-se todos na sala.
- Eu
já expliquei para o Sr. Fontes, Alice, que o valor é aquele mesmo. - Doralice iniciou a conversa.
- É
verdade – respondeu a avó. – O preço é aquele mesmo que eu lhe passei pelo telefone, Sr. Fontes.
- Preço
do que? – Diva se intrometeu, quando o homem se preparava para responder. – O que está à venda?
- O
sebo? – Doralice respondeu.
- Que
sebo?
- O
Relicário. O sebo do seu avô.
- Eu
me esqueci de lhe dizer, não é Diva? – falou a avó. – O Relicário, como a Dora disse, é o sebo que seu avô deixou e...
- E
que a senhora está vendendo... – Diva completou.
- Sim.
- Mas,
por quê? – ela se levantou. - Por que a senhora o está vendendo?
- Porque
eu já estou velha, Diva, e não posso cuidar dele.
- Mas
vender, vó?
- Sim,
eu ia mandar o dinheiro da venda para você...
- Não!
Eu não estou precisando de dinheiro, vó. Sr. Fontes, o sebo não está à
venda.
- Mas,
Diva?
- É
isso mesmo. Não está à venda, Sr. Fontes.
Diva abriu a porta para o homem ir embora e saiu junto com
ele. Doralice e Dona Alice acompanharam
a moça curiosa, que nem sabia onde ficava o tal sebo, mas saiu procurando-o
mesmo assim. A cidade não era tão grande. Logo o encontraria.
Mas não precisou caminhar muito, lá na frente, uma casa
pequena pintada de azul celeste e uma varandinha branca, com uma placa torta
pregada na porta: “Bem vindo ao Relicário.”, tocou o coração de Diva de uma
maneira que ela sentiu-se arrepiar. Os olhos marejaram e sentiu um calor
invadir o coração. A avó abriu a porta. E ela foi a primeira a entrar.
Logo na entrada
estavam as prateleiras, mais de oito, cheias até em cima de livros finos,
grossos, velhos, novos, pequenos, grandes, de todas as cores e tamanhos. Do
outro lado, um pequeno balcão com mais livros, mas bem mais velhos do que todos
os outros que estavam nas prateleiras.
- Seu
avô consertava os livros que estavam muito velhos. – a avó explicou.
Diva assoprou o pó de cima de alguns deles e continuou observando
tudo o que tinha ali como algumas cadeiras e mesas amontoadas em um canto.
- Essas
mesas ficavam ali fora, na varandinha, não é, Alice? – falou Dora.
- É
sim. – a avó respondeu com saudades nos olhos.
Diva sorriu para ela e parou em frente a um quadro com a
fotografia de um senhor branco de olhos pretos e cabelos grisalhos.
- É
o meu avô? – Diva tocou o quadro.
- Você
não se lembra dele, não é? – a avó se aproximou.
- Não,
eu só me lembro do caixão e das flores porque eu não olhei para ele. Eu não queria guardar para sempre a imagem dele no caixão. E
minha mãe não tem nenhuma foto de vocês. Não que eu saiba. Ele era muito
bonito!
- Era
sim. O mais bonito! – a avó também passou a mão na fotografia e sorriu.
Diva balançou a cabeça concordando com a avó enquanto
folheava um livro. Guardou-o em seguida. E foi só nessa hora que elas se deram
conta de que a Doralice tinha ido embora. Quis deixá-las a sós. Diva ainda
tinha tanto o que saber sobre aquela senhora magrinha de cabelos grisalhos e
olhos tão doces e carinhosos!
- Vó,
a senhora não pode vender esse lugar. – insistiu no assunto.
- Diva,
eu já estou muito velha, eu não tenho como cuidar disso.
- Mas
isso aqui é tão... – Diva olhou todo o ambiente. – É tão... – faltaram-lhe as palavras certas. – É como se o vô estivesse aqui.
- É,
eu sei. Ele amava esse lugar. Passava o dia todo aqui.
- Então,
vó... Eu não acho certo vender.
- Mas
tenho certeza de que ele ficaria muito triste se soubesse que esse lugar está abandonado.
- Eu
vou dar um jeito, vó. Mas não vai vender não. Eu vou fazer uma faxina aqui e amanhã mesmo eu o reabrirei. Depois quando eu for
embora, eu penso no que vou fazer. Talvez, eu contrate alguém para ficar aqui.
Que tal?
- Diva,
não sei se é...
- É,
sim, vó. Confia em mim.
- Eu
confio, menina! – a avó lhe deu um abraço. – É claro que eu confio.Mas...
- Mas
nada, dona Alice. Eu vou agora mesmo buscar balde, sabão, pano de chão e começar a limpeza.
- A
teimosia você herdou da sua mãe, Diva!
- Pelo
menos uma coisa, não é? – Diva sorriu. – A senhora não precisa se preocupar, eu dou um jeito na bagunça aqui sozinha.
- Então,
já que eu não tenho escolha, eu vou fazer os bolos para amanhã.
- Bolos?
- Sim,
seu avô vendia bolos aqui. O pessoal sentava ali nas mesas da varandinha, lendo o jornal do dia ou um belo livro enquanto
se deliciavam com um pedaço de um dos meus famosos bolos de chocolate e
morango.
- Hum!
Já me deu até água na boca.
- Mas
depois do almoço, não é Diva? Você almoça e depois vem para cá. Vamos para casa agora.